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Biblioteca do Abismo: Os Dias da Peste, de Fábio Fernandes
O capitalismo inventou a obsolescência programada, mas ninguém imaginou que um dia o Homem, ou o wetware, ficaria obsoleto também. A Ficção Científica, cujo papel é moldar o futuro, e não prevê-lo, foi a primeira a pensar nisso. Talvez pra já ir preparando o terreno pro dia em que a máquina nos tornará tão relevantes quanto o neandertal.
Mas como será a transição pro dia em que formos para o beleléu? Uma boa tentativa de resposta está em OS DIAS DA PESTE, romance do escritor Fábio Fernandes (que também é professor, tradutor, jornalista, dramaturgo e blogueiro de longa data), publicado pelaTarja Editorial .
O livro nos apresenta Artur Matos, professor e técnico de computadores, tendo que lidar com uma estranha infecção das máquinas, que no início suspeita-se que seja um vírus, mas logo percebe-se que há mais do que um simples tilt nos computadores. Artur vai então formulando hipóteses, até descobrir a verdade, e como a humanidade lida com ela, no evento que fica conhecido pelos habitantes do futuro como Convergência.
Na introdução, a esc-ape Lucida Sanz do ano de 2109 (esc nos lembrando do digital, da tecnologia, e o ape nos remetendo ao que temos de animal e primitivo) nos apresenta o diário de Artur Matos, dos anos de 2010 a 2016, seja em formato de blog ou de podcast. A própria introdução faz um jogo de idéias, afinal estamos lendo um livro de papel, que já está se tornando ultrapassado, sobre como a humanidade ficará ultrapassada – a ausência de hyperlinks e atualizações do livro em papel nos remetendo a ausência de atualização do Homem. Mas não seriam as próteses, óculos, entre outros, indícios de que o Homem pode sim receber atualizações? E, a medida em que a tecnologia evoluir, até que ponto a introdução dele em nossos corpos nos manterão ainda como homens, ou nos tornarão ciborgues ou mesmo máquinas? É esse o tipo de questionamento que perpassa todo o livro.
A dificuldade do protagonista em nomear sua máquina (não vou entrar em detalhes pra não exagerar nos spoilers) traduz essa angústia em reconhecer na máquina o Outro. Nomear significa individualizar, significa demonstrar afeto ou algum tipo de emoção, em encarar a máquina como igual, ou menos como sujeito de direitos.
Outro aspecto a se destacar é que a Ficção Científica normalmente possui a divisão em distópica ou utópica, mas o livro é ambos e nenhum ao mesmo tempo. Para o habitante de 2109, o presente é claramente muito melhor e superior ao passado descrito nos diários, mas do ponto de vista de quem viveu de 2010 a 2016, será que esse futuro é tão melhor assim? Essa dualidade de pontos de vista nos mostra o quanto se ganhou e o quanto também se perdeu com o advento da Convergência.
E tudo isso, meus amigos, na prosa clara e divertida do Fábio, com bastante citações pops e acadêmicas, num texto ágil e gostoso de ler. E o protagonista não imaginou o quanto estava certo quando disse, a certa altura do livro, que “ninguém detém a marcha do progresso – mesmo que essa marcha leve direto para o abismo”.
P.S. Você pode ler um trecho do livroaqui